O tango e suas estrelas brilham no palco Vittorio Emanuele

“É minha paixão, minha vida.” Miguel Angel Zotto, lenda do tango, diz isso logo após o grande sucesso do show-evento de domingo no Vittorio Emanuele em Messina, «Tango. Histórias de Astor», para a temporada de Música e Dança da Autoridade Teatral. Mas todos nós tínhamos visto isso com clareza, especialmente o público entusiasmado de dançarinos de tango, vindos também de Reggio e Catânia, liderados pelas principais escolas da região, hoje redutos da mais bela dança do mundo.
Em palco, essa paixão era evidente: nele, ao lado da magnífica Daiana Guspero (a melhor demonstração daquele antigo ditado milonguero: «No tango o homem propõe e a mulher brilha»), nos outros três casais de bailarinos da companhia Tangox2 (os perfeitos Mauro Rodriguez e Suria Lopez Echeverria, Cristian Luna e Ludovica Antonietti, Pablo Garcia e Roberta Beccarini), nos músicos da Tango Sonos Orquesta – Nicola Ippolito no piano, Alessio Menegoli no contrabaixo, Simone Rossetti Bazzaro no violino e Antonio Ippolito no bandoneón, o instrumento, ou melhor, a voz mais poderosa do universo do tango, seu “fuelle”, seu pulmão e sopro vital. E nas duas vozes que acompanharam todo o espetáculo: Carlos Habiague, elegante e com força melodiosa, que parecia ter vindo direto da Buenos Aires da “época de ouro”, e Jéssica Lorusso, talento jovem mas já consagrado, que era a narradora. Porque o tango é música e voz, e gesto e história, tudo junto.

E depois ele, Astor Piazzolla, o outro protagonista que pairou sobre todos nós, com clipes de vídeos em que aparecia menino, criança, músico consagrado, primeiro opositor e depois já mito, cuja música abria e depois fechava a cena (seguida apenas pela tradicional «Cumparsita», que no código mundial das milongas é adeus e adeus) com as notas de um dos tangos mais queridos de todos os tempos, ainda que “moderno”, um verdadeiro manifesto programático a partir do título: «Libertango».
O espetáculo (nascido em 2021, inteiramente escrito e coreografado por Zotto) reúne dois aniversários: o centenário de nascimento de Piazzolla e os 40 anos de carreira de Zotto. Dois revolucionários, como ser revolucionário no tango, que é conservador e inovador desde o seu nascimento misto, multifacetado e popular. Onde os revolucionários não apagam o que existia antes: eles o transformam. «Eles transformam, sim – me diz Zotto –, porque essa é a pura essência do tango. Se Astor Piazzolla não tivesse tocado com Troilo, se não tivesse feito o arranjo de “Quejas de Bandoneón”, se não tivesse convivedo com as orquestras com que tocou, se não tivesse conhecido Gardel, não teria sido o que foi: é a história viva do tango.”

Uma história que vemos desenrolar-se no grande ecrã, desde os inícios da grande tradição, com alguns dos seus mais sublimes protagonistas: Carlos Gardel, Aníbal Troilo, Horacio Ferrer. Depois o ponto de viragem, o encontro com uma professora lendária, Nadia Boulanger, em Paris, que ouviu Piazzolla tocar piano e lhe disse: «Este não é o seu instrumento, é?». Não, o seu era o sopro vital do bandoneón. E foi em Paris que Piazzolla e Zotto se encontraram pela primeira vez: «Tínhamos um amigo em comum, um verdadeiro embaixador de todos os argentinos que chegaram a Paris, José Pons: conhecemos e conversamos muito sobre a história, a sua história. Ele me contou como tudo começou e eu escrevi esse roteiro através da história dele. A partir daquela noite comecei a experimentar a sua música.” História viva.

Uma história que ouvimos na música (desde «Quejas de Bandoneón», aquele comovente “lamento del bandoneón” que é uma das peças imortais de Troilo, até «Zum» de Osvaldo Pugliese, cheio de escalas e dissonâncias, até às mais belas peças de Piazzolla, o comovente «Adios Nonino» dedicado à memória de seu pai, a força de «Maria de Buenos Aires», a primeira ópera de tango no mundo, de 1968, da qual Piazzolla confiou então a coreografia a Zotto para a encenação da Broadway), que vemos nos gestos, nas figuras dos bailarinos como num alfabeto de paixões: do tango das origens, uma mistura de união e luta, de namoro e disputa, o tango que os homens dançavam entre si e as mulheres entre si nos conventillos, antes de se encontrarem na liberdade espaço da milonga; o tango de emigrantes de cinquenta países que, na Lampedusa que era Buenos Aires no início do século XX, trocaram música e nostalgia. E depois Paris e o tango que se refina, se alia ao piano, se espalha pelo mundo. Uma força motriz que não se perdeu: «Está crescendo no mundo – me diz Zotto, com ardor e convicção –. Todos os anos as pessoas começam a dançar em todas as partes do mundo: agora que a África chegou, há uma escola na África. E ainda não estive lá…”.

É uma promessa, obviamente: o tango é a humanidade andando pelo mundo, espalhando abraços. Uma viagem pelo século XX e pelo mundo que fazemos com músicos, com bailarinos: é um concerto, uma performance e uma história, todos juntos, tão multifacetados como o tango. Com centro fogoso: Zotto e Guspero, elegantes e imaginativos, divertidos e ousados ​​na milonga (a parte alegre, rápida e cooperativa do tango, que tinha espaço próprio no espetáculo), precisos como compás, mas sinuosos e criativos em cada proposta ou refrão da música.

E no final, por vontade de Zotto, coreógrafo dos desejos e da humanidade, uma milonga é improvisada no foyer do teatro: caída a cortina a música volta a fluir, os bailarinos voltam a dançar, desta vez para si, misturados com os espectadores. «Vê que bem-vindo, que amor?» — pergunto a Zotto. Sorri, olhando para as pessoas que dançam – “uma dança social” que sublinhou: popular e social, e sem fim -, a lenda ao lado dos iniciantes, os profissionais ao lado dos amadores. Todos felizes em comemorar a mesma coisa. Não, não para comemorar: para ser.

Felipe Costa